
A proposta de uma terceira forma que vá além do A para o gênero feminino e do O para o gênero masculino é conhecida como Linguagem Neutra e compreende, basicamente, a utilização de uma terceira letra para se referir a todos, sem particularizar gênero, inclusive para aqueles que não se identificam com a binariedade – ou seja, não se sentem confortáveis em se associar nem ao feminino, nem ao masculino.
Sobre esse tema, o professor Jáder Cavalcante, membro da Academia Literária do Maranhão, traz interessante e oportuno artigo.
Leia.
Não passe vexame!
Vejo com frequência muita gente falando “todos e todas”, “professores e professoras”, “alunos e alunas” etc. A explicação que dão para isso é que “a língua portuguesa é machista”, e não contempla o gênero feminino na maioria de suas formas plurais, que se dá pela forma masculina, dizem os defensores dessa teoria.
Como dizia a personagem Odorico Paraguaçu — estupendamente interpretada pelo saudoso Paulo Gracindo —, em “O Bem-Amado”, “a inguinorança astravanca o pogréssio”. Vamos, então, explicar por que estamos buscando essa analogia televisiva para esse assunto linguístico:
Como se sabe, a língua portuguesa tem suas bases lexicais e estruturais importadas do latim e, juntamente com o italiano, o espanhol, o francês, o catalão, o galego, o provençal e o romeno, forma o rol de línguas neolatinas — esta última sendo, coincidentemente, a última a se estruturar como tal, não o português, como apregoado por Bilac.
Ocorre que o latim, em suas desinências, não contemplava os gêneros, todos os substantivos de gênero não específico eram neutros, e essa característica foi incorporada pela nossa querida língua portuguesa. Ocorre que o substrato linguístico de que estamos falando resultou da interação cultural de emissários romanos que falavam um latim “meia-boca” (os quais dominaram o sul da península ibérica) com os povos que lá viviam, basicamente, os celtas e os iberos, que eram chamados de celtiberos. E a língua desses povos tinha a diferenciação de gênero.
O caldo linguístico derivado dessa dominação romana gerou a língua portuguesa, que acabou adicionando o gênero feminino em palavras de gênero não específico, como “gato”, “cachorro”, “cansado” etc. (frise-se que, em latim, essas palavras têm gênero neutro). Para adicionar o gênero feminino, criou-se a desinência de gênero –a, enquanto as palavras do gênero masculino continuavam sem essa demarcação. Tanto é assim que a língua portuguesa só tem uma desinência de gênero, a do feminino, -a.
Recordando as aulas de morfologia do início do ensino médio, temos, por exemplo, os adjetivos “pronto” e “pronta”. No segundo caso, a análise morfológica nos indica que temos o radical “pront-” e a desinência de gênero “-a”. No primeiro caso, temos o mesmo radical “pront-” seguido da vogal temática “-o”. Ou seja, não existe desinência de gênero masculino. Em gato/gata, rato/rata, cachorro/cachorra, o “-o” final é vogal temática, é elemento neutro. Já o “-a” final, sim, contempla o feminino, pois é uma desinência de gênero.
Em razão disso, os elementos do gênero masculino, na necessidade de serem também incluídos no discurso, como não tinham uma desinência específica que os contemplasse, sem alternativa, conformaram-se com a adesão forçada ao uso da neutralidade para se incorporarem na língua.
No caso dos substantivos, esse fenômeno de duplo gênero só se dá com seres animados, que têm sexo. Se considerarmos os substantivos “caso” e “casa”, nas duas situações, a análise é idêntica, pois temos o radical “cas-” seguido da vogal temática, pois tanto “-o” quanto “-a” são vogais temáticas. Ora, enquanto “gata” é o feminino de “gato”, não se pode imaginar a mesma relação entre “casa” e “caso”.
Quando se trata de adjetivos, a análise sempre vai contemplar a desinência de gênero em contraponto à vogal temática. Portanto, em “casa suja”, o “-a” final de “casa” é vogal temática, enquanto o “-a” de “suja” é desinência de gênero.
Percebe-se, então, que o gênero feminino ganhou um diferencial na língua portuguesa, no entanto o masculino não teve a mesma sorte: teve de se contentar em ficar agarrado ao neutro, logo é injusto caracterizar a língua portuguesa de machista, pelo contrário: por que só “elas” têm direito a uma desinência específica? Portanto, quando se menciona “todos”, aí estão incluídos os dois gêneros, pois se trata de uma palavra neutra. O uso de “todos e todas” é pleonástico, porque o feminino já está englobado no “todos”, e o discurso de tratamento igualitário vai para as cucuias, uma vez que se está enfatizando o gênero feminino. E, como se sabe, pleonasmo é vício de linguagem, ou, num português mais claro, trata-se de infração linguística.
Nessa mesma linha de raciocínio, percebe-se que não existe razão para se criar uma “linguagem neutra”, pois já existe uma, que é aquela que usa a vogal temática “-o” em palavras biformes. Sabe-se que há muito de ideologia nesse movimento, mas que em nada beneficia a sociedade. Nesse caso, não há como não lembrar o bordão criado por Dias Gomes.
Jáder Cavalcante
Professor e escritor
Membro da Academia Literária do Maranhão